segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Experiência sobre "Matéria" - Esther Weitzman Cia de Dança

Não consegui ver o espetáculo no sábado, dia 18 de outubro. De acordo com uma postagem no stories da Companhia, a sessão lotou. Por isso, resolvi garantir meu ingresso para assistir "Matéria", da Esther Weitzman Companhia de Dança, chegando cedo, por volta das 19 horas, para o espetáculo que começaria às 20h30min no mezanino do SESC de Copacabana. 
Alguns motivos me fizeram garantir a presença. Primeiro, era o último dia da temporada do espetáculo no SESC de Copacabana e, como todo bailarino sabe, o último espetáculo é sempre o que estamos mais "afiados": tem-se mais tempo para ganhar mais segurança no palco, percebendo com mais acuidade as características técnicas do espaço e as relações que se estabelecem com os colegas de trabalho e, obviamente, o corpo se encontra, de forma geral, mais habituado com as demandas do roteiro coreográfico. Em segundo lugar, era um espetáculo da querida Esther, que assina concepção, coreografia e direção desse que é o trabalho comemorativo de 26 anos de existência da Companhia.
Ao chegar na bilheteria, nesse domingo frio e chuvoso, encontro Esther, que me presenteia com um convite e com o sorriso e o abraço mais inconfundíveis e carinhosos do planeta. Esther materializa amor e querer bem, em seu olhar, com sua voz e seus gestos. E isso se vê na dança que ela cria. Expectativa: no elenco, Milena Codeço: amiga da época de Faculdade Angel Vianna. Vê-la em cena seria incrível!!!
Com convite na mão e o programa, aguardo na fila e penso em como o título do trabalho é provocador, uma vez que o que não se tem em uma dança é, exatamente, matéria: e esse é o mistério da dança como Arte. É da dança a efemeridade como característica, justamente, porque ela se realiza em tempo e espaço... E some. Pesquisadores e estudiosos de dança buscam, não com pouco esforço, captura-la em registros - fotos, vídeos - ou valer-se da memória para falar sobre essa arte. Entretanto, um registro não faz jus ao original e é sempre um recorte parcial do objeto tratado, com muitos vieses ideológicos, uma vez que os olhares são sempre baseados em crenças e valores dos sujeitos. Em outras palavras, qualquer registro da dança - sua imagem, seu relato, sua crítica, entre outras formas - é sempre uma perspectiva que não permite, em sua mídia, capturar a experiência presencial. Um registro e/ou uma memória dá conta de falar mais sobre quem registra ou lembra do que sobre o próprio objeto: ambos são imperfeitos e não dão conta do fenômeno da dança quando acontece, em sua completude. 
Pergunto-me: que matéria a Companhia quer tratar como dança? A Companhia promete entregar, na leitura prévia do folder do espetáculo, com seu elenco e ficha técnica competente, um mergulho no universo do pesquisador brasileiro Marcelo Gleiser, a partir da noção de "ressacralização da Terra": uma reconexão com a natureza e reconhecimento da raridade e importância da vida no cosmos. 
Abre plateia. Entro na sala e a plateia que se acomoda nas cadeiras testemunha os bailarinos já no palco, andando e silentes, com a trilha sonora de Gabriel Salsi e João Mello ("Neon1: Shinjuku de Hannah Peel") que ambienta uma atmosfera etérea, o que é auxiliado pela fumaça que auxilia a definição do desenho da luz de Sara Fagundes, iluminando diretamente seis  círculos de luz no chão, que contrastam com a luz levemente azulada, deixando perceber a conexão com as cores dos figurinos criados por Manuela Weitzman: parecem muito confortáveis e que possibilitam movimentos bem amplos, nas cores preta, azul e marrom, vestindo os corpos de Milena Codeço, Rodrigo Gondim, Edney D´Conti, Fagner Santos e Bia Peixoto, que andam em círculos concêntricos, em velocidades variadas. 
Desenvolve-se uma ação sem pausa. O que se vê, de partida, são bailarinos dançando em fluxo contínuo, em moto continuum, que vão transformando as suas trajetórias em espirais, círculos, em todos os níveis, com vibrações, pausas... E recomeços. Formações coreográficas que exploram o sentido de continuidade, de junção e desconexão, sempre movidos pela provocação da força do movimento circular. Física dos corpos: deixam-se embalar e se entregar às forças centrífugas. 
Poeticamente, percebo uma mensagem: tudo o que se apresenta é da ordem de um sistema complexo. O que alguém executa, reflete em todos, de alguma maneira. Todos são responsáveis por suas ações, por seus impulsos, sabendo que o que é feito reverbera no conjunto que dança - e na plateia, que sente, sinestesicamente, o apoio dos corpos que dançam em estruturas invisíveis, "montadas" no/pelo fluxo do movimento contínuo. Imagino que o todo - a dança - é consequência de algumas escolhas, uma vez que todos estão juntos, compartilhando o mesmo espaço e tempo, em experiência afetiva.
Em sua proposição, Esther agrega todos - bailarinos e plateia - em um sentido energético, mágico, que ressacraliza a dança e seu fazer, no que considero o mais necessário de se recapturar na atualidade da condição brasileira e do capitalismo neoliberal: o sentido de comunhão. A retomada da percepção da condição de humanidade como grupo e que todos somos responsáveis por nossas opções individuais que impactam a realidade de muitos: uma realidade sistêmica.
O desenvolvimento em fluxo contínuo da dança que se vê é seguido pela luz e pela trilha, que emociona, arrepia. Noto que o desenvolvimento dos movimentos em fluxo contínuo e circular se torna um vocabulário, muito mais de conexão que de comunicação, entre os bailarinos, uma vez que, aparentemente, não se olham diretamente. Não estão felizes ou tristes: não representam, mas apresentam a expressão do envolvimento com o ritual do movimento compartilhado e engajado com sua continuidade e preocupação com o todo. Momento mágico: todos irrompem em uma corrida acelerada e deixam o palco, no ápice da música, com uma luz branca que encandeia os olhos do público. Aparentemente vazio, continuo imaginando muitas danças acontecendo naquele instante fugaz: o "vazio" da matéria dos corpos que dançam é ocupado, no meu corpo, pela imaginação de ações muitas que acontecem ali, microscópicas, e nos corpos de cada um que respira na plateia e observa, atentamente, o escuro do palco e a excelente trilha que completa a obviedade da poesia: não existiria som sem silêncio, nem luz sem escuridão. 
Não mais o corpo como ferramenta da dança, mas a dança instalada no movimento de cada corpo, com suas vivências específicas e suas próprias histórias das danças. Como equalizar os diferentes corpos e suas experiências? Esther convoca os sujeitos a entrarem e sentirem proposições, ao invés de defenderem partituras baseadas exclusivamente na execução de formas definidas por sistemas técnicos-estéticos de dança. Ao invés disso, uma proposição de movimento dá margem para a exploração do seu fluxo contínuo - e o elenco completa essa equação criativa com muita disposição e habilidade. 
Destaque para o desenho de luz de Sara Fagundes. Eficiente, mas que poderia dialogar com a dança com mais elaboração e ajudado a definir mais as cenas. Considerando a pouca altura do mezanino do SESC, imagino que explorar desenhos de luz com maior complexidade, naquele espaço, deve ser difícil. 
A trilha sonora de Gabriel Salsi e João Mello dialogam totalmente com o projeto concebido por Esther Weitzman. Emociona e completa o sentido de continuidade.
Volto à questão: que matéria é dançada? Talvez seja, de fato, sobre energia. Energia que altera os estados da matéria; Matéria, em sentido amplo, que con-forma a realidade, visível ou não. Matéria de que nós somos feitos: como já disse o astrônomo Carl Sagan, somos todos poeira de estrelas.
Nesse sentido, destaco o depoimento de Esther Weitzman, um olhar para a física "[...] como um meio de transcender o pessoal e compreender a relação do ser humano com o Universo foi necessário para eu poder me reinventar". 
Esther e sua companhia prometem e entregam a ressacralização da dança: entregam algo que não se faz sozinho - e que demanda muita entrega e confiança no processo. Entrega, disponibilidade, crença e muito amor envolvido. É preciso muito amor à dança para se manter, na vida e na arte, como artista. Parabéns pelo 26 anos, Esther Weitzman Companhia de Dança (http://www.estherweitzman.com). Todo e qualquer cidadão  brasileiro, artista ou não, deveria se orgulhar de um trabalho - e uma trabalhadora - de/em dança que consegue chegar à maturidade.
Seu abraço consegue chegar com muito amor ao público - que sai entendendo a inspiração em Gleiser no espetáculo e que o movimento - visível ou não - é a matéria da dança. Matéria que lida com a presença e com a relação com quem assiste: é sobre comunhão.
"Matéria" estará no teatro Cacilda Becker cumprindo temporada na semana que vem. E eu estarei lá, novamente.
Parabéns ao SESC RJ e SESC Copacabana pelo apoio nesse trabalho que reflete a grande possibilidade de termos, como público, acesso a danças de qualidade, quando devidamente apoiadas.