...tenho algumas lembranças sobre o processo de composição do trabalho “Sobre Despalavra” (2001), como bailarino e sendo coreografado e dirigido pelo Renato Vieira, há 24 anos (!!!)... Começo essa escrita com um sorriso no rosto e uma respiração profunda. Soraya Bastos, amiga da vida e da dança, pediu-me para falar sobre o que lembro do processo de criação do trabalho, em especial, como me recordo das relações que Renato buscou estabelecer com a poesia de Manoel de Barros. Desafio. E sigo.
Sei que a memória é um instrumento falho e que, muitas vezes, preenchemos algumas lacunas das lembranças com questões afetivas e outras que nos atravessam ao longo dos anos, mas posso dizer que assumo a responsabilidade de que o que compartilho agora, talvez, tenha muito de alegoria que a minha memória afetiva daquela época preencheu sobre as lacunas do que me falha a lembrança: quase um ato poético, uma vez que contar memórias é também criação subjetiva...Um jeito que cada um encontra para expressar a experiência. Considerando isso, fico mais confortável para me expressar.
Considero a experiência de dançar com o Renato muito positiva; um momento da minha vida que me sentia muito lisonjeado pelo reconhecimento do Renato das minhas possibilidades expressivas como bailarino. Sempre tive admiração e respeito pelo Renato – e, até assumo: certo medo, também. Explico: eu sentia uma vontade muito grande de aprovação. Nesse sentido, treinava, estudava e me esforçava bastante para compreender o que o Renato pedia. Nunca fui um bailarino com grandes possibilidades técnicas e físicas para dançar a dança do Renato – nunca fui muito flexível e não tinha uma técnica de dança totalmente suficiente para os projetos coreográficos do Renato. Portanto, estar no palco com as exemplares e experientes bailarinas Soraya Bastos e Sueli Guerra – e com o amigo, também recém-ingresso na companhia, Gregory Lorenzutti, - era, mais do que uma oportunidade de aprendizado, motivo de orgulho.
Apesar das minhas inseguranças sobre a devida competência para “defender” a coreografia do Renato, creio que fui, naquela época - e durante toda a minha participação como bailarino da companhia (2000 a 2006), - regularmente capaz. Se não pela disponibilidade de formas alongadas e virtuosismo técnico, cumpri, no meu entendimento, na qualidade da expressividade, no tocante ao correto modo de expressar o fluxo e as qualidades do movimento que marcam o estilo do Renato. A meu ver, o trabalho coreográfico do Renato priorizava formas muito bem desenhadas no espaço, uma preocupação detalhista/meticulosa com o modo como o corpo desenha o espaço se moldando em formas alongadas e ampliadas; um tempo que alterna entre o rápido e o sustentado, o decupado e o contínuo; um movimento “sustentado”, onde formas/imagens se constroem...
Ainda sobre como percebo o trabalho do Renato, com raríssimas exceções, em especial em “Sobre Despalavra”, o movimento nunca é aleatório ou improvisado. Em poucas passagens, no processo de criação, improvisamos; mas ele selecionou o que foi “gerado” por nós e isso passou a ser incorporado no projeto coreográfico, e orientado – ou modificado - pelo Renato. Sobre esse aspecto, considero que “Sobre Despalavra” é um espetáculo que Renato conseguiu fechar um projeto muito coerente e coeso: dividido em sessões – ou cenas – inspiradas em poesias do Manoel de Barros, essas sessões, no que diz respeito à dança, têm uma coreografia com um projeto e desenho que conseguem, com muita propriedade, revelar as escolhas e valores estéticos do Renato, com elementos que auxiliam isso, como figurino e luz, projeções, música, entre outros.
Lembro de alguns momentos do processo de criação. Lemos, juntos, algumas poesias de Manoel de Barros. Lembro que Soraya tinha um cuidado especial de imprimir as poesias e guardá-las – não lembro bem se em um caderno ou álbum com folhas de plástico. Isso me vem à memória como havia em cada envolvido no processo, cada uma a seu modo, uma vontade e disposição de colaborar com o Renato e de fazer um trabalho sério e de qualidade. Com a atitude, Soraya me fez perceber que dançar em uma companhia não se tratava apenas de ensaiar e executar um projeto coreográfico, mas se engajar em sua criação, preocupar-se consigo e com o sentido de buscar contribuir na sua realização, compreendendo e se afetando expressivamente no processo. Percebemos, com as leituras em grupo, a relação que Renato buscava, no processo de criação, com Manoel de Barros: não apenas a inspiração das imagens poéticas, mas também a inspiração no modo que a escrita era organizada.
Noutro momento, quando ele me coreografava em um solo, ele executava a movimentação: dançava, mostrando o que queria, com a qualidade de movimento que ele desejava. Em seguida, eu buscava repetir o que percebi, tentando me aproximar do modo que ele executava. Nesse solo, lembro que, em determinado momento, abaixou-se e manteve o olhar fixo em um ponto no chão, como se procurasse algo... colocou a mão direita no chão, com cuidado, como se apanhasse algo e, andando de costas, em linha reta para trás, deslizando e mantendo a mão em contato com o chão, subitamente, levantou-se, com o punho cerrado, e abriu a mão, como se arrancado e jogado algo para trás, com o braço em arco. Disse que era “arrancando o mato”, “capinar”. Na minha percepção, havia muito mais nesse movimento, metaforicamente, que um mero “arrancar de mato”. Mas foi a única coisa que Renato verbalizou sobre o movimento. Percebi que era um modo generoso do Renato me deixar “livre”, para que eu “enxertasse” aquele movimento com o sentimento que me viesse. Penso que era um momento de colaboração e, nessa perspectiva, estávamos, os dois, criando um mundo com a dança, um jeito de organizar em corpo e metáfora o universo pessoal de Renato e Arthur, e como nós dois “sentíamos” o trabalho de Manoel de Barros. Nessa cena, música lenta que remetia a uma gaita, alternada com movimentos rápidos/súbitos, remetia, para mim, a uma atmosfera de solitude, autorreflexão, sem tristeza, mas com alguma melancolia que não era representada na expressão do rosto: não se tratava de uma personagem. Era dança, sem teatro, em sua concepção mais tradicional de ator e de representação.
Em outra passagem, para o início de um duo com Soraya, ele fez uma movimentação, descendo em diagonal do canto esquerdo para o meio da sala. Ele mudava de posições de corpo, em poses, com o impulso do braço direito que “cortava o ar”. Disse que era o facão: cortar tudo, abrindo o caminho. Compreendi que era outra relação imagética com a poesia de Manoel de Barros, uma imagem que o Renato absorveu e que fazia sentido para ele, como imagem que se relaciona com um sentido de ambiente bucólico.
Renato buscava, a meu ver, a relação com um ambiente dos interiores do Brasil, chão de terra batida, cheiro de chuva, silêncio rompido com o som de água corrente e zumbidos de insetos. A relação com a poesia de Manoel de Barros, no trabalho coreográfico do Renato, penso eu, era da ordem de transformar a palavra em sinestesia; não era uma representação da poesia, mas, talvez, uma tradução intersemiótica: a tarefa de dançar o que se sente sobre o que se lê. E nosso trabalho, como bailarinos – e não “intérpretes”, uma vez que não se tratava de forma alguma de “representar” uma personagem – era de traduzir, em qualidade de movimento, a expressividade das imagens da poesia do Manoel de Barros, do modo que o Renato as percebia. Relação forte entre movimento e imagens poéticas que produziam um senso de afetividade e de identidade que cada bailarino tinha em seu próprio repertório de vivências – experiências sinestésicas, olfativas, auditivas... - e que “recheavam” o movimento coreografado de qualidade expressiva.
Compartilhar memórias e lembranças não deixa de ser um modo de revisitar lugares e reviver a experiência. E é reconfortante e me emociona descobrir que sou feliz e agradecido por ter vivido e aprendido tanto na Renato Vieira Cia. de Dança, sobre a dança e suas relações inextrincáveis com imagens, sons, texturas, memórias e, certamente, sobre o “currículo oculto” da dança como arte, que inclui, de forma determinante nos projetos coreográficos, as pessoas e os afetos entre elas, com o devido acolhimento, respeito e sentido de profissionalismo e colaboração.
Arthur Marques
Rio de Janeiro, 4 de novembro de 2025, 11 horas e 29 minutos de uma manhã nublada.
Arthur Marques é professor
adjunto do Departamento de Artes Cênicas da UFPB. Doutor em Comunicação e
Semiótica pela PUC-SP, em estágio pós-doutoral no PPGEO-UERJ. Mestre e
Especialista em Dança pelo PPGDANÇA-UFBA e Licenciado em Dança pela Faculdade
Angel Vianna (RJ). Arthur.marques@academico.ufpb.br
. @artmaralnet (Instagram). http://arthurmarquesdc.blogspot.com
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“Sobre Despalavra” (2001): Espetáculo da Renato Vieira Companhia de Dança. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=C6Tn0uvDm3I. Acesso em: 04 nov.2025. Canal Arthur Marques. 1.388 visualizações 20 de ago. de 2013. "Sobre Despalavra". Espetáculo baseado na poesia homônima de Manoel de Barros. Renato Vieira Companhia de Dança. Espetáculo apresentado e gravado no Teatro SESI - São Paulo, 2001, para o programa STV na Dança. Coreografia: Renato Vieira. Elenco: Arthur Marques, Soraya Bastos, Gregory Lorenzutti, Sueli Guerra. Postado em 20 ago.2013.